De como medir progressos sem contar os segundos...

Tornou-se rotina. Dia sim, dia não calço as sapatilhas, visto as calças desportivas e escolho uma das t-shirts oferecidas pela Inês para o propósito em causa. Coloco os auriculares e escolho a pasta "Running" e lá saio para a rua. Começo sempre com uma pequena caminhada pela colónia onde resido e depois lá me lanço na corrida.

Corro. Pausa. Ando. Corro de novo. Nova pausa. Nova caminhada. Um ciclo que se repete, agora, quatro vezes e que me permite, agora, correr mais de sete minutos, quando em meados de Agosto nem minuto e meio fazia. Não escondo o orgulho que sinto do progresso feito. E assumo que por vezes corro apenas porque penso nisso: como tenho progredido.

Desde que comecei a minha rotina que os guardas, que asseguram a tranquilidade e segurança da colónia, se têm mostrado curiosos. Assumo que deva ser curioso, se não mesmo engraçado, ver um académico estrangeiro a arfar no final da sua corrida; deve ter a sua piada ver um doutor a escorrer suor pelo rosto e com os óculos, por vezes, embaciados.

Eles, os guardas que nos guardam na colónia, refastelam-se nas cadeiras espalhadas no exterior, algumas com aspecto de virem da era colonial, enquanto eu me "torturo" a correr voltinhas em redor da residência ao som de música ora inglesa, ora portuguesa, ora russa, ora espanhola, ora turca, ora francesa e, de quando em vez, até música paquistanesa.

Confesso que ao início tal visão me causava algum desconforto, mas aos poucos notei que não havia no olhar dos guardas jocosidade mas antes curiosidade. Confesso que ao início apetecia-me dizer-lhes que eles, com estômagos a crescer de semana para semana, deviam andar a correr, mas noto agora que não o fazem porque não têm porque o fazer. Porque se cansariam se recebem o mesmo sentadinhos na cadeira almofadada?

E vou correndo. Deixo sempre que a música me preencha os sentidos para não pensar nestas coisas. O que importa é cumprir as metas auto-impostas. E deixar que o resto seja o resto. E lá vou correndo e parando. E no dia seguinte fico pelo quarto, com o número nove gravado na porta. E no dia depois do dia seguinte volto a correr.

Hoje numa dessas pausas, na terceira de quatro que fiz, a rotina quebrou-se. Quando parei, arfando e transpirando em bica, o guarda que vigia as traseiras da residência levantou-se, fez um respeitoso mas atabalhoado sinal de continência (filho de militar sabe destas coisas!) e apontou para a cadeira dele. Ou para as cadeiras: duas! Iguais. Uma para ele e uma para mim. Acedi ao convite, que as pernas pediam descanso.

Num instante percebemos que ele falava tão pouco inglês quanto eu falo urdu, mas isso não impediu a comunicação. Lá lhe perguntei como estava (Aap kaise hain?) a que ele respondeu: "Bem" (Good!). Apontei para o crachá para perguntar o nome dele. Hussain. A idade foi mais complicado, mas lá percebi que tem 36 anos. E do nada saiu-lhe um You very good man (Você, é um homem muito bom) com aquele sotaque típico dos falantes de urdu.

Sorri. Agradeci o cumprimento com um Shukriya (Obrigado). Estendi-lhe a mão para um aperto de mão e fui saudado por um aperto de mão e nova vénia. E depois ele gesticulou para explicar que sabia que só me voltaria a ver na quarta-feira e que eu teria a cadeira em espera. Agradeci de novo, desta feita em português, que o cansaço por vezes prega as suas partidas.

E segui para o quarto. Onde ainda sorrio. Tenho corrido sem querer chegar a qualquer destino, sem querer ir a parte alguma e contudo cheguei aqui: à atenção de quem me vigia. Tenho corrido para mim e por mim, sem perceber que corro também por ele, ou por eles. Tenho corrido para transformar o corpo, mas acabei por transformar o espaço. E na quarta-feira voltarei a calçar as sapatilhas...


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