O primeiro olhar sobre a peculiar eleição presidencial nos EUA

Tenho andado ausente do comentário político e peço desculpas por isso. As novas funções como Coordenador de Licenciatura acabaram por me "roubar" mais tempo do que previsto, e a estas somaram-se funções honoríficas numa série de eventos locais... Mas, aos poucos, tentarei retomar o contacto com a actualidade.

E nada melhor do que re-começar com o tema quente do momento: a eleição de Donald Trump como 45º Presidente dos Estados Unidos da América. Começo por responder a uma questão: em quem votaria? Em ninguém. Como monárquico convicto que sou, não entendo a utilidade da selecção do Chefe de Estado pelo voto popular. Se fosse norte-americano iria descarregar o voto em branco.

Poucos analistas, eu incluído, levaram a sério a candidatura de Donald Trump, quando este anunciou que estava na corrida para a nomeação do Partido Republicano. Em sala de aula cheguei mesmo a dizer aos alunos de Introdução à Ciência Política que as hipóteses de Trump, comparado com Rubio ou Bush, eram mínimas. Estava errado...

Olhando com atenção e curiosidade para o decurso das primárias, em ambos os partidos, comecei a mudar a minha posição. Só os tolos não se adaptam aos factos! Quando regressei a Carachi, em Agosto, assumi por mais do que uma vez que Trump tinha imensas hipóteses de vencer. E não me foquei na parolice insuflada do "discurso do ódio" e do "eleitor-burro". Foquei-me em factos!

Ignorar, como os media e muitos analistas fizeram, o simples facto de Trump ter tido umas primárias sobejamente mais complicadas (à partida) mas, curiosamente, menos dramáticas (à chegada) e de Clinton ter tido o inverso foi algo que me recusei a fazer. É certo que a máquina partidária Republicana reagiu, e muito, contra Trump. Mas é igualmente certo que a Convenção não foi tensa ou dramática como se previa.

Já Hillary Clinton, com a máquina partidária do seu lado (lembremo-nos que a esmagadora maioria dos super-delegados quase automaticamente declararam votar Clinton!) e com os media enamorados por ela, chegou à Convenção dependente de Bernie Sanders. No final do dia foi Sanders, aliás, quem desbloqueou a Convenção, num gesto de extrema lealdade para com o partido Democrata.

As primárias ficaram marcadas pelo tema do "anti-sistema", mas a máquina mediática preferiu focar-se nas gaffes e lapsos linguísticos de Donald Trump. Não querendo escamotear algumas das suas propostas, ficou a impressão de uma ênfase exagerada nos seus traços negativos, quando do outro lado da mesa estava uma política experimentada com provas dadas... e algumas delas com maus resultados ou más práticas.

As primárias falaram alto contra o tal sistema e a hostilização do partido Republicano a Trump, acabou por cristalizar a imagem do guerreiro-solitário que diz o que quer, quando quer, como quer, porque não deve nada ao partido. No outro lado da mesa, com mais tacto e menos verborreia, Sanders tentava fazer o mesmo. Mas Clinton tinha, porque tinha, que ser nomeada e candidata. Afinal já falhara umas eleições primárias em 2008...

É aqui, para mim, que Trump constrói a sua vitória. Soube cavalgar a onda de descontentamento e usar as múltiplas adversidades em sua benesse. Não querendo fazer de Trump um paladino destas eleições, parece-me erróneo ignorar o facto dos jornalistas, analistas políticos, políticos de várias sensibilidades, artistas e académicos terem gozado (literal e metaforicamente!) com Trump. E agora, com o ceptro nas mãos, Trump pode rir-se de todos.

Trump até pode ter dito muita algaraviada e patacoada, mas não tentou focar a sua eleição nos seus órgãos genitais como Clinton acabou por fazer, em muitas instâncias. Disse muito impropério mas a sua agenda era menos oca, mesmo que a possamos rotular de perigosa ou turculenta, do que se tentou "vender".

Clinton mostrou, especialmente nos debates, um lado arrogante, frio, pouco empático e elitista que afastou o eleitorado e que justifica, e muito, a vitória Republicana em todas as frentes. Numa análise fria à linguagem de ambos, nos debates, nenhum sai a ganhar. Mas ao menos Trump assumiu a sua saloice, enquanto Clinton tentava disfarçar a coisa... mas mal...

Os erros de Clinton, na governação, também não ajudaram. Parece-me extraordinário que muito comentador e comentadeiro tenha tentado ignorar, de propósito, as amizades com a Árabia Saudita, os erros graves na Líbia, ou a linguagem confrontacional com Moscovo. O foco era sempre o putativo muro no México, que Trump de resto desmistificou na sua viagem... ao México.

Achei ainda mais curioso, para não dizer ridículo, ter que ler e ouvir muito Europeu criticar a ideia de Trump de expulsar emigrantes ilegais dos EUA (Trump tem pouco, se algum, interesse em expulsar/deportar as comunidades emigrantes legalizadas e a residir nos EUA!), quando muitos desses mesmos Europeus defendem quotas apertadas para a entrada de emigrantes sírios, iraquianos e afegãos na Europa. Um pouco de bom-senso não custa nada pessoas!

O sentimento anti-sistema não é sequer uma novidade. É certo que o UKIP elegeu apenas um deputado nas últimas legislativas de Maio de 2015, mas no voto nacional surgiu como a terceira maior força com 12.6% dos votos. É aliás esse o elemento que tantos comentadores e analistas ignoraram nas suas previsões do referendo ao BREXIT. O voto no UKIP mostrava já descontentamento, mas a arrogância do "sistema" não quis tirar ilações e lá veio "surpresa"...

As eleições na Polónia, em Outubro de 2015, e que resultaram no tal eixo democrático iliberal entre Varsóvia e Budapeste também davam sinais de que havia mudança no ar. E os bons resultados da direita populista na Finlândia, na Suécia, na Dinamarca e na Alemanha (as últimas eleições em Berlim mostraram isso mesmo!) também davam a entender que ou o sistema se reforma, ou o eleitor elegerá quem promete demolir o sistema. Reformar ou implodir!

Para os mais argutos, até os eventos no Brasil com o impeachment de Dilma Rousseff podem ser entendidos como um sinal curioso. Somando a isto, a eleição de Duterte nas Filipinas e as transformações políticas na China comunista e na Turquia pós-golpe; eventos que criaram o cenário político internacional propício ao discurso de Trump. Não ignoro que Trump se apoiou no medo e nas fobias da população, mas que falou também sobre problemas com os quais o eleitor se identificou.

Hillary Clinton sobrestimou a agenda vaginista (desculpem-me a linguagem!) que queria colocar uma mulher, apenas por ser a Primeira Mulher Presidente nos EUA (porque por esse mundo fora, temos tantos exemplos de mulheres no poder!). Não me entenda mal o leitor, acho que as mulheres são tão talentosas quanto os homens em qualquer função, mas não acho que a ênfase nos órgãos genitais seja razão para eleger pessoa A ou B. Clinton não percebeu que a mesma agenda falhara na ONU...

Quem também falhou e muito (e de propósito!) foram as sondagens. Todas as sondagens davam Clinton como 45ª Presidente dos EUA e no final todas elas falharam. O eleitor bofeteou as sondagens e, tenho para mim, deu cartão vermelho ao (quase-inexistente!) legado Obama. Porque no final do dia as altas promessas de Barack Obama ficaram maioritariamente por cumprir. Pergunto-me se a Academia Sueca aceitará a devolução do Nobel entregue em 2009...

O mais curioso de tudo foram as reacções pós-voto, que me fizeram lembrar a azia da direita "pafista" em Portugal, no final das última legislativas. Em Portugal quiseram deturpar o sistema transformando a noção de "quem tem maioria" na noção de "quem chega primeiro". Peço imensas desculpas se ofendo alguém mas é mais idiota e burro quem acha que o eleitorado é burro e idiota só porque o eleitorado não confirmou uma certa visão de mundo.

Em Democracia não temos que gostar do resultado pós-eleitoral, mas temos que o respeitar. Pedidos de repetição do escrutínio, de limitação do direito ao voto e outras tantas parvoíces são apenas um atestado de ignorância a quem os faz. E se o sistema eleitoral nos EUA é injusto, e tenho em crer que será esse o caso, a sua reformulação terá que ser feita a montante do ciclo eleitoral e não a jusante deste. Mudar as regras agora seria imoral, pouco ético e simplesmente cretino.

Igualmente desnecessário é o discurso do apocalipse e do fim do mundo. Parem lá com essas tontices das datas e das efemérides forçadas. No final do dia Trump, como qualquer outro Presidente, terá uma série de limitações constitucionais ao seu poder e dependerá (em larga escala!) da sua equipa governativa. E, para os mais distraídos, Trump foi apenas eleito Presidente nos e dos EUA...

(Amanhã, se for preciso, escreverei sobre o impacto pós-eleitoral de Trump, mas sem alarmismos e catastrofismos bacocos)

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